top of page

As belas (e ridículas) cartas de Fernando

Fernando Pessoa (1888 — 1935), conhecido escritor de várias personificações, afirmou em face de Álvaro de Campos que “todas as cartas de amor são ridículas. ” E que “não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.” No poema, Fernando também diz que em seu tempo escreveu cartas de amor. Lendo isso, fui procurar as tais cartas. Me deparei com um acervo abarrotado de correspondências de Fernando à sua única namorada, Ophélia Queiroz. Em meio a angústias, irritações, saudades e besteirinhas, selecionei algumas cartas para dividir com vocês.

Fernando Pessoa e Ophélia Queiroz

Em razão do aniversário de Ophélia, Fernando escreve uma carta de felicitações e expressa seus desejos futuros quanto a sua amada.

"Meu querido Bebezinho:

Hoje não recebi carta tua, mas — é claro — não me admirei, porque já sabia pela tua carta de ontem (a que me entregaste no carro) que não terias naturalmente tempo de me escrever.

Como esta carta te chega às mãos amanhã de manhã, quero mandar ao meu Bebé muitos e muitos parabéns, muitos beijinhos, e desejar que ela seja muito e muito feliz, que muitas vezes o aniversário se repita com o Bebé sempre contente.

O engraçado era que no ano que vem eu já te pudesse dar estes parabéns de manhã, antes de me levantar.Percebes, Nininha?

Muitos beijos, muitíssimos do teu, muito teu

Fernando"

13/6/1920

Uma resposta descontente a uma carta de Ophélia:

"Ophelinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de «razões» tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais.

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação — creio eu — de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.

Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso «entalar».

Porque não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal — nem a si, nem a ninguém —, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.

Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu.

Eu-próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer cm causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim...

Aí fica o «documento escrito» que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugénio Silva.

Fernando Pessoa"

1.3.1920

Carta escrita por Fernando após meia garrafa de "um vinho do Porto esplêndido":

"Meu Bebé pequeno e rabino:

Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa coisa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra.

Sabes? Estou-te escrevendo mas não estou pensando em ti . Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da caça aos pombos ; e isto é uma coisa, como tu sabes, com que tu não tens nada...

Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem disposta, e eu estava bem disposto, e o dia estava bem disposto também (O meu amigo, não. A. A. Crosse: está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado).

Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade. A terceira razão é haver só duas razões, e portanto não haver terceira razão nenhuma. (Álvaro de Campos, engenheiro).

Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo... Meu Bebé para sentar ao colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para...

(e depois o Bebé é mau e bate-me...) «Corpinho de tentação» te chamei eu; e assim continuarás sendo, mas longe de mim.

Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho... Vem... Estou tão só, tão só de beijinhos ...

Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades de mim a valer . Ao menos isso era uma consolação... Mas tu, se calhar, pensas menos em mim que no rapaz do gargarejo, e no D. A. F. e no guarda-livros da C. D. & C.! Má, má, má, má, má...!!!!!

Açoites é que tu precisas.

Adeus; vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para baixo para descansar o espírito. Assim fazem todos os grandes homens — pelo menos quando têm — 1º espírito, 2º cabeça, 3º balde onde meter a cabeça.

Um beijo só durando todo o tempo que ainda o mundo tem que durar, do teu, sempre e muito teu

Fernando (Nininho)."

5.4.1920

E, por último, uma carta para fazer jus ao termo "ridículas":

"Bebezinho do Nininho-ninho

Oh!

Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei da catinha dela. Oh!

E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.

Oh! O Nininho é pequinininho!

Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis o’as.

Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia (isto é a meia das cinco e meia).

Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?

Jinhos, jinhos e mais jinhos

Fernando"

31/5/1920


Recent Posts
Arquivo
Procure por tags:
bottom of page