Os 10 "melhores" poemas: Manoel de Barros
ENTRADA
Distâncias somavam a gente para menos. Nossa
morada estava tão perto do abandono que dava até
para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens
profundas com os sapos, com as águas e com as
árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza
avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia
está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol
põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me
empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.
Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade
de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem.
Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então
comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei
bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou
copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para
este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis
de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos: 1)
É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria
crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão
que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os
meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas
se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre
o nada eu tenho profundidades.
Poema inicial do livro Poesia Completa.
Manoel de Barros foi um poeta nascido em Cuiabá no ano de 1916, morreu ano passado, aos 97 anos. Atualmente morava em Campo Grande, vivia como fazendeiro e poeta, ao lado da esposa, Stella.
Tinha um ano de idade quando o pai decidiu fundar fazenda com a família no Pantanal: construir rancho, cercar terras, amansar gado selvagem. Nequinho, como era chamado carinhosamente pelos familiares, cresceu brincando no terreiro em frente de casa, pé no chão, entre os currais e as coisas "desimportantes" que marcariam sua obra para sempre. "Ali o que eu tinha era ver os movimentos, a atrapalhação das formigas, caramujos, lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno."
Nos últimos anos de sua vida, segundo o próprio, ele trabalhou para conquistar sua liberdade de ser inútil. Manoel descreveu sua rotina dessa maneira: "Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem".
Então, no princípio, decidimos criar uma lista com os 10 melhores poemas de Manoel de Barros, porém depois pensamos que não haveria forma de decidir isso, e que se houver, não somos as pessoas adequadas. Diante disso, iremos apenas apresentar 10 poemas do Manoel para que vocês também possa aprender um pouco sobre as grandezas do ínfimo.
1- O SOLITÁRIO
Os muros enflorados caminhavam ao lado de um
homem solitário.
Que olhava fixo para certa música estranha
Que um menino extraía do coração de um sapo.
Naquela manhã dominical eu tinha vontade de sofrer
Mas sob as árvores as crianças eram tão comunicativas
Que me faziam esquecer de tudo
Olhando os barcos sobre as ondas...
No entanto o homem passava ladeado de muros!
E eu não pude descobrir em seu olhar de morto
O mais pequeno sinal de que estivesse esperando
alguma dádiva!
Seu corpo fazia uma curva diante das flores.
2- NA ENSEADA DE BOTAFOGO
Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.
Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?
3- PREFÁCIO
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) –
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
dependimentos demais
e tarefas muitas –
os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
que as moscas iriam iluminar
o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas –
passaram essa tarefa para os poetas.
4- No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde
a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
Nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
5- O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio fazer por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
6- A menina apareceu grávida de um gavião.
Veio falou para a mãe: O gavião me desmoçou.
A mãe disse: Você vai parir uma árvore para
a gente comer goiaba nela.
E comeram goiaba.
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
Se a gente encostava em ser ave ganhava o
poder de alçar.
Se a gente falasse a partir de um córrego
a gente pegava murmúrios.
Não havia comportamento de estar.
Urubus conversavam sobre auroras.
Pessoas viravam árvore.
Pedras viravam rouxinóis.
Depois veio a ordem das coisas e as pedras
têm que rolar seu destino de pedra para o resto
dos tempos.
Só as palavras não foram castigadas com
a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com os seus deslimites.
7- A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
8- RUÍNA
Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.
9- POEMA
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
10- O AMOR
Fazer pessoas no frasco não é fácil
Mas se eu estudar ciências eu faço.
Sendo que não é melhor do que fazer
pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
(No jirau é coisa primitiva, eu sei,
Mas é bastante proveitosa)
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso para nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro.
Como um bônus, quem quiser conhecer um pouquinho mais, iremos disponibilizar um curta baseado nas poesias de Manoel de Barros.